quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

O analógico e a velocidade do tempo digital

 Já faz uns bons anos que tenho uma vitrola em casa. Toda vez que mexo na vitrola, é como adentrar uma outra zona de tempo. Os discos são grandes e frágeis, a agulha e o braço dela são delicados, cheios de fiozinhos que requerem o manuseio cuidadoso. Se o disco cair, pode arranhar ou até quebrar, e a brincadeira acaba ali. Quando acaba um lado, você não pode simplesmente ficar sentado e apertar o play pra continuar ouvindo música. Você precisa levantar e repetir o processo todo de novo, com o mesmo cuidado de antes. Às vezes o disco está sujo e precisa ser limpo antes de ouvir. Às vezes entra poeira na agulha e você tem que levantar pra limpar e continuar ouvindo. Ouvir discos em vinil na vitrola é um exercício de presença. Tudo que é analógico e requer um manuseio consciente, é um exercício de presença. 

Então me pergunto o quanto a dança contemporânea (na qual incluo os gêneros de dança que pratico, a dança do ventre e a fusão), não está impregnada pela urgência dos nossos tempos, a rapidez do digital. Para alcançar a velocidade dos algoritmos, é necessário produzir muito, rápido, para consumo imediato e igual rapidez no descarte. 

Sabemos que a pressa e a necessidade de produtividade nunca foram amigos da manifestação artística. O fazer artístico é um processo analógico, e não digital. Requer tempo e presença, atenção e cuidado. 

Observando grande parte de como a dança acontece nas mídias sociais, o que  importa é quantos movimentos acontecem a cada contagem. Quantos padrões de braços impressionantes e diferentes você consegue colocar em cada respiração. E a respiração? Não há tempo para que seja completa, profunda, abdominal. É melhor que ela seja rápida e superficial, assim conseguimos fazer mais e mais por minuto. A dança encarada pelos parâmetros digitais é exaustiva, não tem repouso. Ter que “mostrar serviço” em 1 minutinho de vídeo não permite que sejamos absorvidos por um momento em que o tempo fica suspenso, deixa de existir. Essa não seria afinal uma das funções da arte? Fazer o tempo parar...

Nesse contexto, que nós possamos nos permitir saborear o movimento, nos permitir o deleite de uma demorada e cuidadosa execução. Calma. Respirar, dando respiro também a quem assiste. A crise pela qual passamos agora é do ar. Será esse o motivo da nossa urgência? Respira fundo, profundo... Afinal, como me lembro de ouvir em uma das aulas da Sônia Mota: dançar é ficar em casa. 



2 comentários:

  1. Adorei esse texto! Não pude deixar de pensar que para quem estuda o estilo, toda essa urgência e quantidade de conteúdos, aos quais temos fácil acesso hoje em dia, chega a ser "asfixiante".
    Aliás, esse é um dos motivos pelos quais estou gostando tanto das suas aulas, por me permitir sentir e lapidar os movimentos com calma e cuidado!

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